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La-La Land: a maturidade do amor

Escrevo esse texto a partir de algumas referências, tanto pessoais quanto propriamente textuais. A primeira delas, textuais, é o texto do Zizek que foi traduzido pelo Camelo na Agulha – que se pretende uma análise leninista mas, como todo bom trabalho zizekiano, acaba se tornando um grande líbelo lacaniano. As referências pessoais, incluem: casais próximos que se dão muito bem, casais próximos que estão/estavam em crise, e dois relacionamentos próprios que acabaram mal.

Com isso em mente, e aproveitando que re-assisti ao filme, decidi escrever isso. Pensando nisso – anteriormente a ler o texto do Zizek, que foi o estopim para vomitar no papel tudo o que estou pensando -, cheguei à conclusão de que La La Land é um filme que foi muito subestimado pela crítica, principalmente quando a mesma coloca em Sebastian o grande fio condutor da trama. Mas, chegaremos lá.

A lição básica de Rapsódia de King Vidor é que, a fim de conquistar o amor da mulher amada, o homem deve provar que ele é capaz de sobreviver sem ela, que ele prefere sua missão ou profissão a ela. Há duas escolhas imediatas: (1) minha carreira profissional é o que mais me importa, a mulher é apenas uma diversão, um caso para se distrair; (2) a mulher é tudo para mim; estou pronto a me humilhar, a renunciar a toda minha dignidade pública e profissional por ela. Ambas são falsas, já que levam o homem a ser rejeitado pela mulher. A mensagem do verdadeiro amor é assim: ainda que você seja tudo para mim, posso sobreviver sem você e estou pronto a renunciar a você por minha missão ou profissão. Assim, a maneira adequada da mulher testar o amor do homem é “traí-lo” no momento crucial de sua carreira (o primeiro concerto público no filme, o exame muito importante, a negociação empresarial que decidirá sua carreira). Somente se ele puder sobreviver à provação e realizar com sucesso sua tarefa, estando ao mesmo tempo profundamente traumatizado pela deserção dela, só então ele será merecedor dela e ela voltará para ele. O paradoxo subjacente é que o amor, precisamente como o Absoluto, não deveria ser posicionado como um objetivo direto. Ele deve manter na condição de um produto derivado, de algo que ganhamos como uma graça imerecida. Talvez não haja maior amor do que o de um casal revolucionário em que ambos os amantes estão prontos a abandonar o outro a qualquer momento se a revolução assim exigir.

ZIZEK, Slavoj. The Philosophical Salon, 2017. Traduzido e disponível em: https://camelonagulha.blogspot.com.br/2017/05/la-la-land-uma-leitura-leninista.html?m=1

Gostaria de partir dessa citação de Zizek para começar minha análise básica e completamente mutável sobre o amor: uma questão filosófica básica, que nos atinge desde os primórdios do pensamento. Seja ele o amor amigo aristotélico, ao amor como prova da incapacidade de Deus que Hume nos mostra, o amor é, junto do mal, o grande problema da humanidade. Foi bastante tratado filosoficamente e, quando entrou na “cultura” – principalmente a “cultura pop” – foi construído romanticamente.

Há uma série de críticas muito bem fundadas ao amor romântico. O século XIX tem um panorama de pensamento dual muito interessante: ao mesmo tempo que as teorias positivistas evolucionistas chegam ao seu ápice, com o darwinismo social, o holismo, o sobrenatural, o inexplicável e o apaixonante também são características do período. Podemos pensar em Saint-Simon, de um lado, e Edgar Allan Poe, do outro; na literatura, em O Cortiço e em O Médico e o Monstro. Desse caldo, surge a ideia do amor romântico, justamente nos romances de revista do período: grandes aventuras amorosas que, reforçadas pelo esteriótipo da moça indefesa e do galã salvador, vão pautar quase todas as histórias cinematográficas do início do século seguinte.

La La Land é uma obra que, no período que estamos, tem sua própria relação com essas questões. Zizek aponta no final do seu texto que Mia faz a escolha leninista da Causa – e é apoiada por Sebastian. Acredito eu, que vai muito além disso: o apoio de Sebastian à decisão de Mia é a auto-consciência da importância da manutenção daquele amor como ele era. Como assim?

O amor de Sebastian e Mia começou com uma “briga” e se modelou, a partir dela, em um universo de fantasia. O começo do filme é entrelaçado por grandes e épicas cenas de musicais. Fantasia, animação e felicidade permeiam todas as músicas do filme – com exceção de três, que irei falar logo menos -, desde a cena da ida à festa, até o sapateado e a dança à la tango de enfrentamento que acontece entre os dois – que significa aquele momento máximo de um casal que está saindo há um tempo, mas ainda não rolou.

City of Stars, a primeira das músicas mais melancólicas do filme, é o momento de inflexão. É a conclusão: “putz, estou apaixonado”; depois disso, Sebastian investe, e Mia também se deixa levar no relacionamento. Quando ambos engatam o namoro, cria-se a rotina e, nesse ínterim, eles revelam um ao outro o grande sonho de suas vidas: Mia, quer ser uma atriz renomada; Sebastian quer… o que Sebastian quer?

O que nos é falado é que o rapaz quer ter seu próprio clube de jazz. Mas o clube de jazz tem um significado maior: ele vê o seu ritmo e estilo de música favorito se desfascelando. Ele tromba com as pessoas da idade dele – Mia é um ótimo exemplo – que não conhecem os maiores jazzistas de Los Angeles. O sonho de Sebastian é maior, muito maior – e também muito mais difícil que o de Mia, por exemplo. O sonho de Sebastian é renascer o jazz: e ele não o realiza, diferentemente de Mia. Mas, retomo isso ao final do texto.

Assim, o amor de Mia e Sebastian se desenvolve entrelaçando-se com as suas carreiras, a grande Causa (retomando Zizek e Lenin) das suas vidas. Em determinado momento, Sebastian começa a trabalhar numa banda que está ficando ultra famosa – que tem um hit muito incrível, diga-se de passagem – e aqui determinam-se duas coisas fundamentais ao filme: o filme deixa de ser um musical (as cenas de canto e dança só acontecerão novamente no final) e o relacionamento de Mia e Sebastian entra em crise. Afinal, os musicais acabaram: a fantasia acabou.

Os relacionamentos em geral têm essa característica: uma hora, os musicais dele acabam. A rotina os consome, os limitam; acabam por enterrá-los debaixo dela mesma. Um casal saudável (e quem fala a vocês é um rapaz que ainda não teve um relacionamento que pode ser dito “saudável”) deveria saber manter em doses boas esses musicais. Criar momentos em que eles são possíveis, dosá-los com a rotina e com seus trabalhos. Mia e Sebastian não conseguiram? Talvez, apenas amadureceram, e reconheceram: esse amor não funciona assim.

Cada amor é um amor, cada história é uma história; o amor romântico criou um rótulo e definiu-o, vendendo em série um sentimento pessoal. Mia e Sebastian tiveram seu relacionamento, mas ele se desgastou. Por quê? Por causa das carreiras deles? Não, definitivamente não: a carreira é a Causa central da vida de Mia, enquanto que o sonho melancólico de Sebastian – mesmo que impossível – pode ser mantido em sua própria bolha. A carreira de Mia possibilitou que ela conhecesse alguém e, pasmém, tivesse um filho com esse alguém. A “carreira” de Sebastian – a banda – destruiu não o relacionamento dele com Mia: destruiu o relacionamento dele com sua Causa. E Mia sabia disso, e jogou isso na cara de Sebastian que, ignorando-a, fez com que ela fosse embora.

Quando Sebastian nota que Mia tem um teste, tudo se realiza: o importante é a Causa. Sebastian vai buscá-la na casa dos pais dela. Eles estavam separados. Sebastian foi encontrá-la não para reatar o relacionamento, mas sim para que ela pudesse seguir sua Causa, seu sonho. E aí nos é revelada a segunda música que não é animada do musical – e também uma música que não se encaixa no ritmo do primeiro momento do filme: não há dança. É uma música pesada, artística, densa. É uma baita música, diga-se de passagem.

Essa música tem uma relação importante pra mim. Me lembrou a minha falecida tia-avó Liz que, junto do meu avô Jeiffer, foi a grande inspiração pra várias coisas da minha vida.

A conversa dos dois no banco não sepulta, por fim, o amor que sentem e sentirão um pelo outro. Ela sepulta a possibilidade dele continuar: não é a carreira dela que acaba com isso, nem a “carreira dele” – e muito menos a escolha dele por criar a própria bolha, o Seb’s. O que sepulta o amor de Mia e Sebastian é o reconhecimento e o amadurecimento de que não há mais momento, não há mais paixão e, principalmente, não há musical: aquele é o amor que depende do musical para funcionar. Nasceu dele e depende dele. Quando os dois encontram-se em momentos distintos, torna-se impossível que ele continue a sê-lo.

Fiquei com a sensação de que essa separação é muito dada pela escolha das carreiras deles: o musical envolve atuação em união com a música. Quando os dois estavam juntos, era isso que eles faziam, juntos e separados. Quando se separam, Sebastian segue para a música, enquanto Mia segue para a atuação: acredito que esse é um subtexto interessante que Damien Chazelle se aproveitou. O fim do relacionamento deles é o fim do musical, tanto no final (eles vão rareando aos poucos) quanto na própria trajetória individual. Suas Causas próprias impossibilitariam qualquer tipo de continuação do casal. E a maturidade de ambos leva-os a chegar a essa conclusão.

Por fim, a cena final:

Essa cena, acredito, vai muito mais além do que um “o que aconteceria se…” e nos mostra muito de o quanto o amor que sentiram amadureceu. No sentido de: aquilo aconteceu na cabeça deles. Eles tiveram tempo e consciência de construir essa fantasia: o retorno de uma cena musical é bastante sintomático disso. Mas, diferente dos musicais anteriores, esse acontece num mundo onde tudo é possível: a troca frenética é bastante interessante, e as construções que não fazem sentido, além da homenagem clara aos filmes de Hollywood. As homenagens anteriores no filme ou foram realmente faladas – as do jazz – ou sutis. Nesse momento, não: a bagagem cultural de Mia é ciclicamente realizada.

Aliás, lanço mão de uma hipótese: muito provavelmente essa é a fantasia da Mia. Mesmo que ela comece no rosto de Sebastian, podemos notar que ela se encerra no rosto de Mia, que está claramente desconfortável por ter pensado nisso tudo com seu esposo ao lado. É apenas uma hipótese, mas é algo a se pensar.

Enfim, termino a análise do filme com essa reflexão. O amor de Mia e Sebastian se construiu através da fantasia do musical, mas amadureceu e se reconheceu livre de si mesmo quando as Causas de cada um foram chamadas à tona. Mia se casou com alguém que se encaixava no seu projeto de vida, na sua Causa maior; Sebastian, mesmo sozinho, conseguiu criar sua bolha e manter a fantasia de que o jazz continua vivo.

O amor dos dois, muito além do romântico, é um amor que, por manter-se em fantasia, manteve-se idealizado. Mas de uma maneira madura.

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