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Minha difícil relação com a História e a Filosofia

Começo esse post com um vídeo obrigatório, mas que não tem muita coisa a ver com o post em si. Quer dizer, no limite, tem tudo a ver; mas não tem. Confuso né? Bem vindo.

Uma das grandes questões que tenho comigo mesmo é: “que tipo de historiador eu sou?”. A outra é: “que tipo de historiador eu quero ser?”. Existem diferenças gritantes entre as duas concepções, as duas realidades; e elas são processo mutáveis e construídos pelo meu percurso enquanto historiador.

É importante notar que eu ainda não me formei: estou no último ano da graduação, pretendo começar outra graduação em área próxima (Filosofia) no ano que vem, e seguir para a pós-graduação em História Social. E aí entra e primeira delimitação temática (resposta para as minhas duas perguntas anteriores): eu definitivamente serei um ‘historiador social’. Daqueles que o Hobsbawm trata em Sobre História num dos textos mais clássicos da sua bibliografia.

O historiador social tem como tema a compreensão da realidade social como um todo – incluindo as realidades culturais, econômicas, religiosas e filosóficas – em seu devido período de tempo. Isso é complicado e, muitas vezes, utópico: nós temos a necessidade de recortes que vão além do temporal (a história total é um tema interessante e complexo, mas já um tanto ultrapassado como nos aponta Le Goff e outros membros da chamada Terceira Geração dos Annales), principalmente o geográfico.

Além disso, meu recorte vai além: meus interesses de pesquisa seguem a chamada “História das Religiões” – bem definida metodologicamente pela Escola Italiana de História das Religiões, principalmente no livro História das Religiões: Perspectiva histórico-comparativa do professor Adone Agnolin, não por acaso, meu orientador. Mas… religião? Por quê? A resposta é clara, para mim: a religião é um sistema cultural complexo que envolve política, filosofia, metafísica e a resposta pra grande questão existencial “quem somos?”, nós humanos no caso.

Mas, e a filosofia? A filosofia é uma paixão intrínseca minha. Um grande interesse total pelo pensamento humano em si. Os grandes interessa metafísicos aristotélicos, platônicos e medievais, que se transformam durante a Modernidade e são completamente outros no pensamento contemporâneo (só pegar Nietzsche ou Sartre, por exemplo). Comparações, retomadas, conceitos completamente abstratos: tudo isso interessa totalmente a mim enquanto um estudante do Homem e da Humanidade – não por acaso, o humanismo renascentista é um tema de estudo muito caro a mim.

Pois bem, a partir disso, nós temos um problema metodológico: enquanto os filósofos não têm noção nenhuma de processos históricos (mesmo quando tentam fazer “Histórias da Filosofia”, como Bertrand Russell, e acabam comparando Platão com o nazismo como se um fosse vizinho do outro; ou então simples compêndios de conceitos que servem a uma problemática a ser estudada, como Nossa Humanidade de Francis Wolff e a justaposição de definições filosóficas do homem que criam um caminho próprio, ignorando outras noções), os historiadores têm pouca noção de elementos filosóficos e das suas utilizações dentro das próprias construções filosóficas. Os melhores livros sobre filosofia acabam sendo estudos de caso filosóficos sobre determinados filósofos – e esses sim servem de base para os historiadores criarem suas “redes conceituais” conforme Quentin Skinner aponta em seus trabalhos metodológicos.

Existem exceções, claro: Paul Ricoeur é um dos filósofos que trabalham hermenêutica e filosoficamente a problemática do fazer história em si como não se faz entre os historiadores há um tempo. Acredito que antes dele, quem tratou filosoficamente o problema da história tinha sido apenas Hegel, e ainda com uma perspectiva teleológica bem complexa e datada. Ricoeur, ao analisar semântica e psicologicamente a problemática do fazer história – levando em consideração tanto a proposta “narrativa” pós-moderna quanto a realidade dos fatos históricos, numa perspectiva estruturalista (ou pós-estruturalista foucaultiana) -, traz algumas das mais geniais ideias quanto à problema História como disciplina. Por outro lado, Reinhardt Koselleck, enquanto “historiador dos conceitos”, temporaliza e historiciza o problema da História durante a própria História: em Estratos do Tempo e outros ensaios, o  autor analisa o conceito de “História” e de “tempo histórico” dentro de determinados contextos, principalmente na Alta Modernidade.

Trago os dois autores para mostrar o problema que enfrento/boto aqui: nós historiadores e os filósofos não conseguem conversar. O filósofo ignora a historicização, enquanto o historiador ignora os conceitos filosóficos; Karl Popper, no início do século XX, fez um tratado contra o ‘historicismo’, e outros modelos filosóficos – principalmente aqueles pautadas pelo imaginário – ignoram a história, criando sensibilizações gerais e noções completamente generalistas. O Homem nunca deixará de sê-lo de maneira x, y ou z: seja ela aristotélica, platônica ou nietzschiana, a noção que o filósofo tem do homem não muda. Assim como a teologia ignora os determinantes sociais, temporais e culturais da religião, os estudiosos da filosofia tendem a fazê-lo com os conceitos filosóficos. Isso gera comparações esdrúxulas (a supracitada Platão-nazismo é um exemplo delas) por parte dos filósofos.

Enquanto isso, os historiadores acabam criando grandes quadros temporais que não levam em conta as próprias influências filosóficas que a sociedade tem em si mesma: no livro Crise da Consciência Europeia 1680-1715, Paul Hazard (um belletrista que não se prende nem aos dogmas da Filosofia, em aos dogmas da História) tende a recortar os autores com as duas problemáticas, tanto as noções próprias da filosofia e como ela se transforma no período com o pensamento de Pierre Bayle e Baruch Spinoza, como constroi a noção processual tão cara à História – principalmente à disciplina naquele momento da década de 1930. Um estrangeiro (Paul Hazard) consegue fazer melhor o que autores como Marc Bloch Lucien Febvre não conseguem: enquanto os segundos pintam quadros estáticos – “o homem do século XVI” ou o “homem medieval” como conceitos sociológico-temporais dados e não processos dentro de processos -, Paul Hazard entende o processo interno, as manutenções e complexas revisitações que cada autor faz de si mesmo. Pierre Bayle, mesmo que um “ateu convicto”, permanece em si mesmo com a moral política republicana do período (pautada na noção religiosa de ecclesia), assim como Baruch Spinoza mantém um tipo de “ateísmo espiritualista” – visão da qual discordo de Hazard, mas que, dentro da obra do autor belga, mostra como o processo é resistente e progressista em si mesmo, tanto no pensamento individual de Spinoza, como no pensamento geral dos movimentos filosóficos do momento, como os libertinos.

Entre História e Filosofia, eu me encontro num conflito interno: a tendência, enquanto historiador, é entender tudo em seu período histórico. Essa é a grande magia da nossa profissão, já dizia Marc Bloch em Apologia da História. Encontrar o “homem no tempo”, como o ogro da fábula, é nossa função? Sim. Mas e as ideias desses homens? Apenas a “antropofagia histórica” – outra referência que me é cara de meu orientador, Adone Agnolin – é o bastante? A mim, não. E então, decidi ano passado seguir uma nova perspectiva: prestarei o vestibular em Filosofia no fim do ano e, se tudo der certo, ano que vem serei um historiador formado em vias de seguir à Filosofia. A História continuará sendo a minha perspectiva: sempre encontrar o lugar histórico das ideias – principalmente metafísicas, religiosas e filosóficas – mas, também com os conceitos e a tratativa filosófica.

Pois bem: conseguirei resolver essa querela? Muito dificilmente. Mas quero transpô-la e fazer dela, além de um modelo metodológico, um caminho historiográfico. Espero dar certo.

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