Filmes · Juliana Zanezi · Maristela Aiko

Mulher-Maravilha: Quando a indústria cultural descobre as mulheres poderosas, por Juliana Zanezi e Maristela Aiko

Ultimamente temos visto inúmeras publicações, críticas e resenhas extremamente positivas e felizes sobre o filme da maior heroína de todos os tempos, Mulher Maravilha. O filme – sucesso absoluto de bilheterias – conta com um elenco com certa experiência em blockbusters, efeitos visuais deslumbrantes, sequências empolgantes e uma fotografia belíssima, com grande variação na paleta de cores, o que torna a cinematografia bela. Claramente, o que chama atenção neste filme é justamente ser o primeiro grande* do segmento a ser solo de uma heroína: os filmes com protagonismo exclusivamente masculinos são majoritários e, mesmo com “side-kicks” e companheiras fortes, os moços tem o centro do holofote. Então agora teremos uma protagonista feminina empoderada? Calma lá, não foi bem assim. Explicaremos.

A Diana dos quadrinhos é uma mulher extremamente culta, estudada, conhecedora do mundo humano (“dos homens”) em todos os aspectos e detalhes teóricos possíveis. Seu treinamento marcial é exímio, versada em diversos tipos de combates corpo a corpo, armas brancas, acrobacias. Com um dom concedido por cada um dos deuses do panteão grego, ela seria invencível. Tem super-força, reflexos e velocidade super-humanos. Seus braceletes mágicos param qualquer projétil lançado contra eles. O Laço de Héstia, ou Laço da Verdade, é um instrumento crucial nesta empreitada: qualquer contato com o mesmo faz com que qualquer pessoa diga a mais completa verdade. Enfim, Mulher Maravilha é um símbolo da verdade, da justiça, da força e poder femininos, seja emocional, psicológico e físico: uma mulher completamente empoderada. Que tal um brevíssimo panorama desta figura histórica ao longo de quase oitenta anos antes de partir pro filme?

Ela existe desde a primeira onda do feminismo. Ela foi criada em 1941 por William Houton Marston, já com a intenção de suprir a falta de super-heroínas. Houton inclusive apoiava o movimento feminista e das mulheres sufragistas nos EUA que lutava pelo direito de sufrágio (de votarem e serem votadas). Nossa heroína ganha sua primeira revista solo em 1942, na lendária “Wonder Woman #1”. Infelizmente, com o tempo, as histórias começaram a ser muito romantizadas e a presença masculina acabou predominando, diminuindo a atenção sobre Diana. Mas durante a segunda onda do feminismo, Gloria Steinem, jornalista e ativista feminista, colocou a Mulher Maravilha na capa da primeira edição da Ms. Magazine, revista que foi um marco na segunda onda do feminismo. A partir daí, ela se tornou um ícone para o movimento.

Em 1975, a maravilhosa (olha o trocadilho!) Linda Carter surge com um programa de televisão como Mulher Maravilha e contribui para o crescimento da personagem e o protagonismo da mulher. Mas, a partir dos anos 90, diferentes artistas homens deram diferentes direções para a Maravilha. Mais infelizmente ainda, passaram a representa-la com proporções corporais bizarras, com feições e posições super sexualizadas e, pasmem, que associavam o Laço da Verdade com práticas bondage! Terrível, né? Mas completamente aceito pelo público (99% masculino até então). Curiosidade: Marston, o criador, também é o famoso psicólogo criador do polígrafo! Daí vem a ideia do laço, sacou?

Hipersexualização e relativa aproximação com bondagem. Homens, menos.

Depois de alguns anos nestes modelos, a indústria dos quadrinhos, como parte essencial da indústria cultural, se modificou para atender às demandas do público, agora com mulheres. E mulheres que não queriam nada deste modelo ridículo que foi relegado às heroínas e vilãs. Eles voltaram a usar os ideais da Mulher Maravilha de Carter, que tem proporções mais reais, força e personalidade forte. Não podemos esquecer as cores vermelho, azul e dourado chapadas essencialmente patrióticas dos EUA que nunca se perderam. Com isso, hoje temos animações gloriosas baseadas nos quadrinhos maravilhosos, poderosos e, em sua maioria, realmente nos passam a Diana em essência: Feminista. Querendo ou não, temos de aceitar que essa é a heroína mais ligada aos movimentos feministas e que carrega essas ideias na raíz de seu conceito. Ela é maravilha porque foi criada com o intuito de combater os atributos que estereotipam a “mulher tradicional”: frágil, doce, domesticada e submissa. Para ver o quanto era difícil não ser essa mulher aí: só mesmo vindo de uma ilha na qual regia uma sociedade matriarcal e sendo semideusa para não consentir a tal estereótipo.

 Então, qual é a maneira inteligente de fazer um filme hoje? Uma Mulher Maravilha que questione e tente combater estes atributos (afinal, infelizmente, ainda existem em peso) e outros tantos que ainda geram a violência (física, emocional, psicológica, sexual) contra a mulher. Alguém está dizendo que ela deveria aparecer não depilada e usando roupas sem identidade de gênero? Óbvio que não. Por mais feminista que sejamos, não podemos ser tolas de achar que um ícone de cultura pop num filme mercadológico e comercial traria algo assim. O problema é que, mesmo sabendo que seria “apenas um filme de indústria cultural de massa” que segue determinados padrões, dava pra esperarmos mais do filme.

Primeiro, vamos ao enredo: começamos com sua infância e a lenda da criação de Zeus e a guerra contra Ares, deus da guerra. As amazonas seriam as destinadas a combatê-lo e destruí-lo quando  este retornasse. Tido como “o mal na Terra”, Ares é formado por violentas formas apropriadas da cultura grega da idealização homérica do “ser homem”: posturas tido como masculinos, viria para representar o machismo como estrutura e como os homens são atingidos por ele, mesmo que não seja o foco da análise. A doce e inocente Diana cresce desejando lutar e botar tudo pra quebrar como suas companheiras. Treinada por Antíope (Robin Wright, gloriosa e poderosa), ela se tornará a maior guerreira entre as amazonas.

Logo crescida, um incidente: um avião cai na ilha de Themyscira e conhecemos á figura de Steve Trevor. A partir daí, o filme degringola, é frustração do até o fim. Terminamos o filme pensando, em primeiro lugar, que não poderia ser visto como um filme da heroína solo. Steve tem tanto protagonismo quanto ela e, pra sermos sinceras, ele rouba a cena de um modo negativo – lidera o tempo inteiro, toma a frente não só pelo seu papel de apresentar o mundo real a ela: interfere o tempo inteiro, interrompe, impede, fala e “ensina”. Francamente? Ele a manda calar a boca o filme todo: “não chame atenção”, “fique quieta”, “eu sei”, “eu explico”, “não é bem assim”, “eu vou”. Claramente, um homem de sua época (e da nossa também). Porém, o problema é que Diana NUNCA (repetimos, NUNCA) iria aceitar essa atitude dele: Steve acabaria sem os dentes da frente já na primeira cena que aparece, mandando-a ficar atrás das pedras quando os alemães chegam atirando.

Omi desconstruído.

 Já essa origem é terrível: apenas quanto Steve chega à ilha que elas tomam consciência da guerra “lá fora”. Ridículo. As amazonas sabem TUDO sobre o mundo dos homens, tudo mesmo. Eles que não sabem da existência delas. Particularmente, esperávamos o lendário torneio organizado pelas líderes e a rainha Hypolita, com intuito de escolher a melhor das guerreiras para ser a “embaixadora” entre os homens – no entanto, proibindo Diana de participar. Mesmo assim, ela entra e, vencendo anonimamente todas suas companheiras, obriga sua mãe a deixa-la ir. Assim, elas enviam alguém por que era necessário e elas sabiam. Não precisava vir um cara e dizer isso. Desde os anos 70. Um retrocesso nesta origem.

 “Mas, gente, não dava tempo de fazer tudo isso!”, você pode pensar. Discordamos. Muitas cenas a partir da chegada de Steve poderiam ser facilmente descartadas, tanto por serem mal estruturadas quanto por serem meio ridículas. Sim, Snyder poderia ter escrito um duelo majestoso entre as amazonas e seria espetacular. Mas não, ele decide fazê-la fugir com Steve, despedida melosa da mãe, prova de roupas (que cena ridícula!!!) e outras mais. Digamos que Snyder já teve roteiros melhores.

O principal, que é extremamente frustrante ao ponto de ser cômico: Diana está infantilizada, está frágil demais – uma boba. O que não condiz nem com a HQ e, sequer com o enredo da história. Steve não teria que apresenta-la ao mundo dos homens porque, novamente, ela já sabe tudo isso! Eles que não sabem da existência de Themyscira! Diana iria apenas experimentar o que já conhecia muito bem, já saberia quais roupas escolher, o que é uma cidade humana, o que significa dançar e andar de mãos dadas. Descartaria uma série de cenas e atitudes ridicularizantes como quando ela vê um bebê, comprar roupas, carregar espada e escudo na frente de todo mundo. Além dos mais, se pensarmos em algo fora dos quadrinhos. Uma mulher que:

  1. Viveu a vida toda em uma sociedade matriarcal, com um total de zero homens;
  2. É amazona, guerreira com treinamento marcial extremo desde a infância;
  3. Tão conhecedora do mundo real e conhecedora exímia da filosofia, literatura, história, música, línguas, notícias, política, economia, ou seja, com bagagem cultural e intelectual que tem;

… Por que raios ela seria tão ingênua e condescendente?

Steve mente pra ela e age de forma condescendente (“Ares? Ah, uhum, mal  na terra existe sim, pode crer, vamos nessa”) o filme todo. Chega a ser patético e qualquer explicação para isso seria trágica. Praticamente toda a ação dela é por e para ele. Sim, a personagem de Diana deveria ser símbolo de amor, mas um amor incondicional – muito mais ligado às virtudes de uma leitora de Platão e de uma líder ou matriarca firme e justa, do que um amor romântico, juvenil e bobo, do qual Jane Austen sentiria vergonha. Ela diz, em certo momento do filme, que poderia citar Sócrates em grego. Ficamos contentes: achamos que ela deveria, talvez assim ela rememorasse os temas recorrentes que permeia a filosofia socrática: o conhecimento de virtudes como justiça, coragem, piedade. Bem como ele criticava as crenças infundidas por opiniões instáveis, por falta de conhecer o que é justo e bom; o que poderia gerar o mal. A importância da temperança também. Mas não teve nada disso.

De tal forma que não faz sentido, a Diana do filme aceita e adere muito facilmente a tudo que o Steve, desde a mentira que a faz escolher sair da Themyscira, que partido tomar em relação à guerra, que roupa vestir, quando falar. Ela ir de encontro com o ideal dos EUA não é atoa, claro: nunca podemos esquecer que mesmo “grega” ela é norte-americana e também vai de encontro a ideologias respectivas. Sem contar que ela ama de uma maneira que não condiz com sua condição, é um o amor romântico construído numa sociedade patriarcal: uma construção da qual ela conhece, mas nunca participou, logo, não poderia se comportar assim.

E o “grand finale”: ela só mata o grande vilão por causa da queda de Steve? Ela estava presa, quando vê Steve morrendo heroicamente. Aí ela grita o nome dele e consegue se soltar? Em que momento Diana pode ser Diana, sem a interferência ou a influência de Steve? Afinal, achamos que era disso que o filme se tratava.

Não estamos dizendo que ela não possa gostar de Steve. Ela gosta. De fato, Steve vive muitos anos ainda e, com o tempo, eles passam a ter um relacionamento.  Mas nunca um desses “convencional”. Ela não é uma mulher convencional. Ela é a maravilha. Procurem no Google Imagens eles nos quadrinhos e vejam!

Ninguém disse que ela não pode trabalhar junto com outros homens: Diana integra a Liga da Justiça, sendo por anos (e agora de novo… Por favor, Snyder) a única mulher integrante. Sim, ela trabalha bem com os rapazes. Nós trabalhamos bem com eles, certo? Juntos. Ela é integrante da Tríade principal da DC Comics ao lado de Superman e Batman. Ela tem uma amizade e companheirismo para com eles, confiança, lealdade. Assim como eles têm para com ela. Uma mulher que inspira luta, força, inteligência, virtude, justiça, amor, liberdade, verdade, piedade!

E, por incrível que pareça, ela sempre é tratada em pé de igualdade aos outros dois membros da Trindade DC.

Para quem acha que o feminismo não deve existir (por mais difícil que seja de sustentar tal posicionamento, há muita gente que tenta) ou aos alheios ao movimento, é um filme incrível, divertido, emocionante. Para aqueles que foram assistir para ver a lindíssima Gal Gadot, também: ela faz caras e bocas, desfila e está de fato maravilhosa, lindíssima. Mas a Mulher Maravilha não é maravilha porque é maravilhosa. Engana-se quem faz esse tipo de associação rasa. Ela é maravilhosa porque é empoderada, busca o bem, é amorosa e inteligente. Ela age libertando mulheres de amarras sociais, dizendo “viu, tu não precisa de um homem te guiando”. Percebem o retrocesso? Acaba passando mensagens secundárias e implícitas erradas: muitas “Dianas” continuarão acreditando que precisam de um “Steve” para conhecer e salvar o mundo real. Talvez explique o salário maior de Chris Pine? Nice try.

Lemos e ouvimos muitas notícias alardeando o fato de Gal Gadot ter recebido muito menos que qualquer outro personagem de filmes de super heróis. Mas não se enganem: não são apenas nos filmes deste segmento que o salário das moças é inferior aos de todos os homens protagonistas de qualquer filme de proporção parecida na indústria. Quantas mulheres não têm salários ridiculamente baixos em comparação aos seus colegas? Nada disso é novidade. Lembrou-nos Robin Wright que exigiu ganhar o mesmo que seu parceiro, Kevin Spacey, afinal ambos tem o mesmo peso e protagonismo na série House of Cards. O ponto é, desde que a mulher começou a trabalhar fora de casa também, ela recebe menos por isso. Fato que me leva a entrar na primeira questão sobre o filme: o que o filme Mulher Maravilha de 2017 tem a ver com feminismo ou empoderamento feminino? Muito pouco.

Enfim, acaba sendo mais um filme de super-herói que, mesmo trazendo o maior ícone feminino de cultura pop da história, empoderador e imponente, o faz de maneira esquisita. Reconhecemos que um filme deste gênero jamais será feminista, ou não atingirá o público masculino (e geral) como atingiu. Mas temos exemplos de mulheres mais empoderadas neste segmento: Gamora (Guardiões da Galáxia), Natasha Romanov (mesmo bem sexualizada, é extremamente poderosa e esperamos um filme com sua origem no Salão Escarlate), Hope Pym (Homem Formiga).  Poderíamos citar muitas mais e mencionar cada qual com suas virtudes e atitudes que as empoderam. Percebem? Personagens “coadjuvantes” mais poderosas e firmes que a heroína em questão.  O que é condizente com Diana estar extremamente empoderada e fenomenal em “Batman versus Superman”, filme no qual era coadjuvante e acaba roubando a cena completamente por sua astúcia e força perante o próprio Bruce Wayne e Apocalipse.

Por fim, as mensagens implícitas e elipsadas são tristes: não importa o quão “mulherão da porra” você seja, o quão forte, poderosa, esperta ou badass você  seja: sempre vai ter um homem te guiando. Sempre vai ter um cara mais “apto” pra ser protagonista. Novamente: lembrando que estes filmes são comerciais.  São produtos de uma indústria de massa que têm como objetivo exclusivo vender, extrair o máximo que conseguir de qualquer elemento criativo ou intelectual que agrade o publico geral.

Acreditamos, sim, na repercussão positiva que este filme tem no imaginário infantil do momento: é grandioso ver uma mulher tão badass na tela, para qualquer criança! Mesmo para os meninos, que sempre veem suas figuras representadas, a mudança é bem aceita, eles passam a ver as meninas como “mais iguais”, mais fortes e inteligentes. A mulher forte deve estar presente. Crescemos assistindo o fenômeno “Princesa Léia” (Star Wars) em ação e, em meio tantos heróis “meninos”, eu me sentia feliz com aquela representação! Léia, dos anos 70, assim como Linda Carter, está mais próxima do empoderamento real das meninas do que a Mulher Maravilha de 2017 de Gal Gadot.

Essas mensagens mais amplas são melhores inseridas no imaginário das crianças, pois elas veem as coisas de forma mais “simples”, puro. O machismo, assim como a LGBTfobia, racismo, etc, são socialmente construídos, tendo forte influencia dos pais, escola e cultura de massa. Quando reforçados pela indústria cultural de forma extrema, tornam-se mais perigosos ainda. Não podemos deixar de lado o bordão “representatividade importa!”. Ela importa sim no momento histórico, social, político e capitalista no qual o mundo está imerso.  Nossa grande guerra (e das gerações pós-guerra) é “espiritual”: são nossas próprias vidas. Fazemos parte de alguma coisa?

Ao final desta resenha, ou você está pensando “Nossa, vou ver com outros olhos e tentar perceber isso que vocês escreveram, pra concordar ou discordar!”. Obrigada, era isso que queríamos! Levantar uma discussão sobre os limites desse empoderamento. Por outro lado, pode estar pensando “Caramba, vocês feministas nunca estão satisfeitas mesmo”. Realmente, baby. Parafraseando a própria Mulher Maravilha, “quando todo o mal e violência chegarem ao fim.”, aí estaremos satisfeitas.


* Consideramos esse o primeiro filme grande pois Elektra Mulher-Gato, além de serem grandesíssimas bombas, são filmes com orçamento muito limitado em comparação a outros filmes de herois, mesmo da mesma época, como Homem Aranha.

Um comentário em “Mulher-Maravilha: Quando a indústria cultural descobre as mulheres poderosas, por Juliana Zanezi e Maristela Aiko

  1. Há meses — desde quando vi o filme no cinema — procurava por uma resenha que traduzisse tudo que senti e pensei vendo esse filme; li diversas críticas de escritoras feministas que defendiam com unhas e dentes essa representação tosca da Diana. Hoje, finalmente, encontrei um texto sensato que me tranquilizou por provar que ainda há aquelas entre nós que não irão se contentar com migalhas de representatividade e um suposto empoderamento, absurdamente raso. Agradeço pelas palavras.

    Curtido por 2 pessoas

Deixar mensagem para Camu Cancelar resposta